Reverendissimo (Liber Amicorum)

Portuguese translation of ‘Reverendissimo (Liber Amicorum)

by Bruno Castro Schröder / Ludovicus Barbara Mooren

 

Reverendissimo (Liber Amicorum)

[1]

Reverendíssimo,

Dos cinquenta anos de vida religiosa que Nosso Senhor lhe concedeu, Ele, e você com Ele, me concederam trinta e seis. Sim, posso dizer isso, pois desde que nos conhecemos, há trinta e seis anos – você veio de Roma para Boxmeer para nos ensinar Filosofia – me cativou de maneira especial e foi muito mais do que um professor, foi um pai e um amigo muito especial para mim. Logo de início, você me envolveu na relação que estabeleceu conosco, jovens frades. Falava latim, fazia isso à moda italiana, mal o entendíamos. Eu fui até você, perguntando se aprovava que eu tentasse escrever um resumo das aulas para, após sua revisão, multiplicá-lo. Você não gostou muito da ideia e preferiu escrever tudo sozinho. E escreveu – em um ano, três livros inteiros – e nós os multiplicamos e estudamos. Eu me tornei seu primeiro intermediário e homem de confiança, transcrevia tudo até que, no Natal, fiquei doente, e outros assumiram. Assim, estivemos juntos com mais frequência do que normalmente acontece entre um lector[2] e um frade. E, embora não me desse lições especiais, já naquela época eu aprendia mais com você do que os outros, fui privilegiado pela sua convivência, compartilhei do seu otimismo, ouvi, de vez em quando, sobre sua rica experiência de vida e aproveitei isso. Eu era jovem e teimoso e tinha minhas próprias opiniões, às vezes bastante pronunciadas. Você sempre as tolerou, às vezes ria delas, sabia me fazer refletir com uma única observação, de modo que eu deixava de mencioná-las e, assim, gradualmente, me tornava mais sábio. Mais tarde, tive mestres mais duros e rigorosos. Pode ter sido bom para mim, mas ainda assim sinto que sua paciência com minha sabedoria juvenil, ou melhor, talvez tolice, com uma ocasional observação precisa, que não soava como uma repreensão, me fez mais bem do que os comentários de outros, que às vezes incitavam minha mente à contradição, pois eu não encontrava uma base racional para eles. Frisia non cantat, ratiocinatur[3]. E você me abordava com nada além de algo que me convencia. Passei a respeitar sua visão, fui tocado pelo seu interesse, alegrava-me com sua amizade, que me elevava.

Para quem entende bem, meia palavra basta. E nós nos entendíamos. Não conversávamos muito, de fato. Ah, isso não acontecia. Havia uma separação bastante forte entre Padres e Frades. O Padre Gabriel e o Padre Pius eram rigorosos quanto a isso, e isso era bom. Estava prescrito. Às vezes, achavam que estávamos suficientemente ocupados uns com os outros, embora tivessem que admitir – e sempre admitiam – que, como intermediário para a multiplicação das suas lições, eu estava mais com você do que os outros. Mas, embora falássemos relativamente pouco um com o outro, nós nos compreendíamos e [149] nos simpatizávamos um pelo outro. A distância sempre foi mantida, ambos insistíamos nisso e cuidávamos disso. Nunca nos tratamos com familiaridade excessiva. Mas essa distância não impedia que nos sentíssemos ligados em muitos aspectos e que entre nós crescesse algo da mais sincera e íntima amizade, inspirada por um ideal comum: estudar como carmelita e, através do estudo e da promoção do estudo no Carmelo, reviver as antigas tradições gloriosas. Você lutou toda sua vida no Carmelo, e eu tive o privilégio de ser levado por você nessa causa. Estivemos juntos em Boxmeer por apenas um ano, mas foi tempo suficiente para nos conectarmos estreitamente. No Natal, fiquei seriamente doente. Você veio até mim ao meu leito, não podia pensar em estudar, você também não falava de Filosofia, mas, naqueles breves minutos, você me contou sobre seu tempo em Roma, suas provações e dificuldades, sua às vezes bruta rebeldia contra o que você achava errado e realmente era errado, não para me tornar amargo ou rebelde – isso você nunca fez – mas para me mostrar que algo precisava ser feito e podia ser feito, que não precisava ser do jeito que era e que Nosso Senhor queria que fosse diferente, e que deveriam surgir pessoas para mudar o rumo, não em rebeldia, mas em sincero amor pela Ordem e seu verdadeiro florescimento. Seus amigos se tornaram meus amigos. Eu amava você, [150] que me mostrou tanta amizade. Eu nunca tinha visto seus amigos, mas gostava deles. Passei a admirar com você o Geral Galli, Caruso, o Procurador Geral, Alfonso de Rosa, Assistente Geral em San Martino, Alleva em Nápoles, Cuschieri em Malta – eles ganharam um lugar no meu coração, talvez quase maior do que no seu. Falávamos sobre eles, eu perguntava a você sobre eles, você escrevia para eles sobre mim e, por seu intermédio, recebia suas saudações, mesmo que fossem desconhecidos para mim. Com você e através de você, formou-se um grupo de amigos espirituais, todos inspirados pelo mesmo ideal. E esse círculo foi gradualmente crescendo. O ideal nos conquistou. Mas, por mais que tenha conquistado muitos, você permaneceu o líder, o “homem forte”, que sabia perseverar e unir e inspirar todos os que lutavam por isso.

Depois de um ano, nossos caminhos se separaram novamente. Fui para Zenderen para estudar Teologia. Você ficou em Boxmeer por mais alguns meses. Então, ainda tão jovem, você foi nomeado Procurador Geral, a segunda pessoa na Ordem. Eu mal sabia o que isso significava. Você também foi surpreendido, embora tivesse coragem para aceitar, foi seu primeiro triunfo na luta de sua vida. Veio a Zenderen e me contou que havia sido escolhido para o cargo e que achava melhor aceitá-lo. Você veio falar com o Provincial. Parecia que também veio me consultar. Achei maravilhoso. Imaginei muitas coisas sobre isso. Não senti nenhuma objeção quanto à sua idade jovem. Eu tinha 22 anos e via você como um homem mais velho, embora tivesse 32. [151] Achei que você certamente deveria ir, que poderia fazer muito bem para a Ordem. Eu rezaria por você, não podia fazer mais, e trabalharia na sua linha de pensamento, na medida em que, à minha maneira, achasse que podia e devia. Você me escreveu cartas de Roma, e eu me orgulhava disso, mas também ficava sem palavras. Sempre detestei chamar atenção, fazer exceções, embora frequentemente tivesse que fazê-las devido a doenças e vários trabalhos que me eram atribuídos. Você se interessava por mim e queria que cuidassem bem de mim. Tinha muito a dizer e dizia o que precisava. O Padre Eugenius[4], que logo depois se tornou meu Prefect[5] em Oss, por três anos, gostava muito menos de mim e não conseguia entender por que você me estimava tanto. Ele tinha razão, na medida em que via melhor meus defeitos e me dava muitos alertas que foram benéficos para mim, às vezes me colocando no meu lugar quando eu tentava me destacar. Isso foi bom e muito útil, e eu aproveitei essas lições. Sou grato a ele também, mas nós nos entendíamos muito menos. Tolerávamos menos um ao outro, e isso durou muito tempo. Por sua influência, quando nossa turma terminou os estudos, ele fez com que eu não me tornasse leitor, embora parecesse indicado para isso. Fui preterido. E havia razão para isso. Eu era muito obstinado naqueles dias e, em várias questões filosóficas e teológicas, tinha minhas próprias opiniões, algo que o Padre Eugenius não conseguia aceitar, até achava perigoso. Ele me disse isso uma vez com toda sinceridade, mas eu não conseguia compartilhar dessa visão, embora levasse a sério suas palavras. Eu era [152] sincero e aberto, cheio de entusiasmo e amor pela Igreja, pela Ordem, por Nosso Senhor[6], de modo que não conseguia imaginar correr o risco de me desviar. Eu tinha algumas opiniões diferentes das ensinadas na escola, mas achava que isso só me colocava em conflito com meu Prefect e Professor em questões menores. Até no exame final, houve um confronto, quando perguntei se poderia defender o oposto da tese proposta. Tratava-se de uma espécie de qualidade ontológica dos anjos. Você ouviu com surpresa que me achavam perigoso e viu com tristeza e irritação que, por isso, me haviam excluído do leitorato. Nunca me senti muito mal com isso. Foi uma das muitas lições que eu precisava. E Nosso Senhor dispôs que assim eu fosse mais certamente designado para isso. Ele dispôs que você viesse ao nosso país alguns meses depois porque sua mãe tinha ficado doente. Você veio a Oss e achou que eu já poderia ir para Roma. Fui escolhido como sacristão, participava de assistências de vez em quando, escrevia alguns artigos e traduzia um pouco. Eu tinha meu trabalho, mas não era exigente. Você achou que eu poderia fazer outro trabalho e propôs me levar com você. Eu me mantive o mais neutro possível, mas secretamente adorei a ideia. O médico foi consultado para ver se eu estava forte o suficiente. Ele não viu impedimentos. Eu não era forte, podia adoecer. E realmente adoeci. Mas, com um pouco de cuidado, não era mais perigoso para mim lá do que aqui. Praticamente o Padre Provincial [153] já tinha dado permissão. Então, tinha que acontecer. Na quinta-feira, voltei de Coudewater, onde estava em assistência. No sábado, estava em Zenderen com o Provincial. Na quinta-feira seguinte, deveria estar em Weert para viajar com você. Achei que devia avisar o Provincial que tinha muitas opiniões divergentes, especialmente em Filosofia, e que, se esperavam que eu ensinasse o ensino tradicional, poderiam se decepcionar, que o Padre Eugenius também me achava perigoso. O Provincial deu, como sempre, uma resposta curta e resoluta: “Então você deve ir a Roma para estudar Filosofia melhor”. Ele e você estavam certos. Converti completamente de várias opiniões divergentes, e poucas coisas me dão mais prazer do que poder estudar novamente Filosofia na Gregoriana, por sua mediação. Muitas coisas que eram obscuras para mim se tornaram claras, uma conquista maravilhosa, da qual sempre desfruto, e que outros nem pensam. No início de novembro de 1906, partimos juntos via Munique para Roma. Foi uma bela viagem. Minha mãe nos preparou com toda a boa vontade para a viagem, especialmente para mim. Embora não fosse necessário, minha mãe confiou a você todos os cuidados por mim, e seu zelo reforçou ainda mais os laços que nos uniam. Em Roma, aprendi muito. Principalmente com você, a superar a desvalorização e os reveses como se nada tivesse acontecido. Sim, você também se irritava às vezes e perdia a calma quando a situação saía do controle, mas logo recuperava o bom humor e o equilíbrio, detinha-se tão pouco nisso que eu ficava perplexo. Assim, aprendi a ser forte na luta, a superar muitas dificuldades. Você seguia em frente, direto ao ponto. Também aprendi com você a manter o foco no principal e sempre considerar as questões secundárias como secundárias.

Dois anos estivemos juntos lá. Eles confirmaram o que o ano em Boxmeer já havia trazido: nossa amizade para sempre em prol do grande objetivo de nossas vidas, responder ao chamado da Ordem de Maria e, assim, aproximar toda a Ordem de suas gloriosas tradições. Não posso descrever mais do que o começo, o primeiro crescimento de nossa amizade. Haveria muito mais a dizer sobre os anos posteriores. Nós dois sabemos tão bem que não preciso escrever, posso deixar assim. Que Nosso Senhor, por meio da intercessão da Mãe do Carmelo, o Trono da Sabedoria, continue a abençoar nossa amizade e, acima de tudo, que o florescimento do estudo em Merkelbeek seja para a Província e para a Ordem a promessa de um novo florescimento como recompensa e coroa de sua obra de vida.

Nijmegen, Na sua Bodas de Ouro

P. Titus Brandsma

 


  1. Texto manuscrito no Album Amicorum para Hubertus Driessen (páginas 147-154), 1937, por ocasião de seu jubileu de ouro (50 anos de profissão religiosa de Hubertus Driessen). O Nederlands Carmelitaans Instituut – NCI também preserva o conceito mais extenso datilografado para este Album Amicorum.
  2. Nota do Tradutor – Nos países anglo-saxões usa-se a palavra latina lector para designar um professor.
  3. NT – Literalmente “A Frísia não canta, raciocina”.
  4. NT – No texto, Heerbroer. O termo, respeitoso, Heerbroer refere-se a um irmão que é padre. Neste caso, Titus Brandsma se refere ao irmão de Hubertus Driessen, o Pe. Eugenius Driessen, O.Carm. Se se tratar de um irmão que é bispo, usa-se Heeroom.
  5. NT – “Prefeito” dos alunos do convento ou da casa de formação, seu equivalente é “formador” ou, em alguns países, “maestro”.
  6. NT – Coloquialmente nos Países Baixo utiliza-se a expressão Onzen Lieven Heer e Onze Lieve Vrouw para designar Jesus e Maria, respectivamente. Literalmente significa Nosso Amado Senhor/ Nossa Amada Senhora.

 

Tradução de Bruno Castro Schröder e Ludovicus Barbara Mooren (Belo Horizonte, 2024)

© Titus Brandsma Instituut 2024