Portuguese translation of ‘Vrede en vredelievendheid‘
by Bruno C. Schröder
Paz e Amor à Paz
Autoridades civis e espirituais altamente respeitadas da cidade de Deventer, Senhoras e Senhores, Amigos da Paz.
Permitam-me que comece por dizer que foi com alegria que aceitei o convite para exprimir aqui esta noite o meu amor pela paz, para proclamar a minha crença na paz a pessoas de todas as convicções e partidos e para avivar a esperança de paz, não só no meu coração, mas também no de todos vós, que partilham o meu amor pela paz e gostariam de vê-la reinar na terra em vez da guerra e da guerra outra vez.
Mas, embora todos amemos a paz e tenhamos fé no nosso coração de que a nossa ação em seu favor não pode permanecer ineficaz, nem os senhores nem eu podemos escapar à pressão dos tempos, o que, neste contexto, significa que não podemos nos libertar completamente da dúvida geral sobre se podemos mudar o que parece ser uma lei da história, que é o fato de ocorrerem guerras atrás de guerras e de o trabalho em prol da paz receber repetidamente o golpe final da destruição. Vivemos ainda demasiado sob o feitiço de que aquele que quer a paz tem de se armar de forma a poder ganhar uma guerra. E quando os povos estão armados – tão armados que pensam que podem ganhar uma guerra –, esse sentimento de poder é o mais forte incentivo para fazer valer o que é considerado o seu direito pela força das armas, ou seja, da forma mais horrível, e para fazê-lo reconhecer. Assim, sob o pretexto de trabalhar para a paz, foi preparada a maior guerra. Isso levou muitos a pensar que é inútil lutar por ela, que devemos nos resignar fatalisticamente ao fato da guerra, convencidos da nossa incapacidade de impedir que a lei da história entre em vigor.
Mas não, então não só as nossas mentes mas também os nossos intelectos entram em oposição. Depois, por outro lado, apercebemo-nos de que aquilo que parece ser lei só o pode ser, no máximo, devido à disposição humana, que a história nos mostra, que nessa disposição pode ser feita uma inversão, pode ocorrer uma reação contra ela e, se essa reação encontrar apoio suficiente, não deve ser considerado impossível manter a paz no mundo, a culpa, sim, falo de culpa, a culpa de todos nós pela guerra pode ser reduzida, pode ser gradualmente removida de nós.
Se olharmos atentamente para os fatos, temos de reconhecer que todos nós, na sociedade em que vivemos e por meio dela, promovemos a guerra e somos, portanto, culpados por ela. O nosso amor pela paz ainda não era o verdadeiro amor bem ordenado. Quão melhor, mais perfeito, mais eficaz poderia ter sido o nosso amor pela paz. E se as pessoas tivessem realmente amado a paz com mais sinceridade e com uma visão mais correta, não com palavras, mas de fato, não seriam as possibilidades de guerra um pouco diferentes?
É como se a humanidade tivesse sido atingida por um golpe de cegueira.
Entristece-nos quando, tendo acabado de assistir à crueldade animalesca da guerra mundial, vemos as nações armarem-se de novo e com mais medo, como se nada tivessem aprendido.
A situação parece de fato muito sombria.
Mas é notável como, ao longo de todos os séculos, os arautos da paz se ergueram sempre de novo, os pacificadores e os proclamadores da mensagem de paz. E mesmo que, após algum tempo, a sua voz se tenha perdido no tumulto emergente das batalhas, depois do horror da guerra veio a reflexão, e a mensagem de paz ressoou novamente.
Em todos os tempos e entre todos os povos, conhecemos esses arautos, esses apóstolos da paz. E, felizmente, também não faltam no nosso tempo.
Mas nenhuma mensagem de paz encontrou maior ressonância do que a d’Aquele a quem nós, católicos, gostamos de chamar o Rei da Paz. Permitam-me que o repita aqui.
Enquanto no dia de Páscoa, depois da morte de Cristo na Cruz, a situação parecia desesperada para os Apóstolos, embora aos olhos do mundo a missão de Cristo estivesse terminada, fracassada, incompreendida, Ele apareceu no meio dos Apóstolos reunidos no Cenáculo, temendo os seus inimigos, e em vez do clamor de guerra dos inimigos que se aproximavam, soou aos seus ouvidos: “A paz seja convosco. Eu vos dou a minha paz, não vo- la dou como o mundo a dá”[2].
Se Cristo, nessa hora de tristeza e de desânimo, apesar de tudo, fez soar de novo, como primeira palavra após a sua ressurreição, a palavra cantada pelos anjos sobre a manjedoura de Belém, então pode também neste tempo grave e triste – quando milhares se riem de todo o trabalho pela paz, chamando vãos a todos os esforços para a paz – pode não, deve ser, a saudação de Cristo ainda mais fortemente a nossa. E nós desejamos a paz e a trazemos à humanidade, como Ele outrora o fez.
Muito pode nos separar, mas o amor pela paz nos uniu aqui de uma forma maravilhosa. E embora nem todos tenhamos a mesma concepção da missão de Cristo neste mundo, todos concordamos que a sua mensagem de paz foi, e continua sendo, de grande importância para o mundo. Agora que estamos aqui todos juntos para a grande, a grande obra da paz e que todos queremos exprimir, cada um à sua maneira, o amor que nutrimos pela paz, a sua mensagem de paz não pode faltar no coro, e considero um privilégio, como sacerdote da Igreja Católica, repetir aqui a mensagem de paz de Cristo, precisamente porque estou convencido de que, por mais que estejamos divididos, esta palavra de paz é muito apreciada por todos nós aqui presentes.
Gostaria de repetir as suas palavras, fazê-las ecoar pelo mundo inteiro, independentemente de quem esteja me ouvindo. Gostaria de repeti-las, para que todos ouçam, mesmo quem antes virava a cabeça, até que todos tenham ouvido e compreendido. O próprio fato de a paz ser universalmente desprezada me obriga a proclamar a mensagem da paz ainda mais alto. Mas quanto melhor aqui, onde o amor, ou melhor, o entusiasmo pela paz procura a concepção mais correta do que se deve entender por paz, se deseja cantar os seus louvores em todas as línguas.
Reconheço que esta mensagem de paz – por mais que tenha ressoado em muitos corações – foi mal compreendida pela história e continua a não ser compreendida por muitos atualmente. À guerra seguiu-se a guerra, e a paz que as nações, cansadas de lutar, concluem traz em si as sementes de novas guerras. Já faz dez anos, em todos os tipos de conferências internacionais, os delegados das nações têm trabalhado em pesquisas, nas mais sérias discussões sobre como reduzir as possibilidades de guerra. O resultado é triste e terrivelmente desencorajador. Por todo o lado se encontram as maiores dificuldades. Cada um luta pelo seu próprio interesse, mais ainda, pela sua própria preservação, e não se vê como é que essa luta de cada um por si poderia ser resolvida pela remoção das contradições. O mundo está organizado de tal forma que, se não lutarmos, seremos pisoteados, e só a luta pode fazer avançar o homem.
As pessoas acreditam, ou melhor, proclamam abertamente, que numa sociedade com princípios de paz e amor não se começa nada, que na luta pela existência é preciso ser forte e tornar-se cada vez mais forte, porque o poder do mais forte cria justiça.
Não, não estou exagerando.
É certo que ainda há indulgência no mundo, ainda há amor e justiça, ainda há reconhecimento da lei e da ordem, mas o que é espantoso é o que se proclama contra ela sobre os fundamentos do direito, sobre a organização da sociedade, sobre a necessidade de luta e de contra-ataque. Cheguei mesmo a ouvir acadêmicos muito sérios e cristãos sinceros advertirem contra a atual ação de paz, fazendo referência à história, que ensinaria claramente que só uma nação que sabe lutar pode falar de uma era de prosperidade e progresso na sua história. Não serve de nada, dizem eles, negar a verdadeira natureza do ser humano e deixar assim a sociedade presa dos piores elementos que ela contém. O mal, o interesse próprio, a postura dos poderosos simplesmente existem, não vale a pena negá-los, é importante tê-los em conta e armar-se contra eles, caso contrário a sociedade acabará por cair completamente sob o poder dos piores. A luta, dizem, é necessária para manter o bem na sociedade. Se o bem quer prevalecer, tem de se tornar o mais forte. Só então pode triunfar, se tiver o poder supremo, se submeter tudo a si próprio e, numa guerra sem tréguas, assegurar a sua vitória.
E assim o patrão arma-se contra o empregado e vice-versa, assim uma classe arma-se contra outra. E nessa mentalidade, como não poderia deixar de ser, também um povo, um país contra outro para manter os seus direitos mais sagrados. Não se vê em lado nenhum a possibilidade de fixar um preço para a posição de luta, para a manutenção de uma posição de poder, porque se o fizermos, sabemos que iremos sucumbir.
Esta não é apenas a prática da vida, tornou-se a teoria de muitos. É considerado inútil para alguns poucos, ou mesmo para qualquer grupo, opor-se a isso.
As causas da última guerra mundial têm sido objeto de investigação. Para responder a essa questão, foram constituídas vastas sociedades científicas. Há anos que estudam, e a investigação ainda não está concluída. A guerra não é um fenômeno histórico tão simples como parece a muitos. Quando, no final de julho de 1914, os jornais nos inundaram com a notícia desconcertante de que nos países que nos rodeiam foi declarado o estado de guerra, um ultimato se segue a outro e os telegramas passam dia e noite entre os chefes de Estado e os primeiros governantes da Áustria, da Rússia, da Alemanha, da Inglaterra e da França. Aguardamos certamente com grande expectativa o que os imperadores, os reis e os presidentes vão decidir e, por um momento, parece que o destino da Europa está nas mãos deles. Mas o que podem eles fazer perante os fatos calculados e a força de certos sistemas, perante a excitação suscitada pelo contexto em que esses fatos são vistos? Os poderosos podem não ser completamente impotentes, não quero diminuir a sua influência e eliminá-la completamente, mas o que é que ainda podem fazer para evitar a guerra? Mesmo naquele momento? Não quero comprovar aqui o que preocupou dezenas de acadêmicos durante anos, não vou fazer uma descrição completa das causas da última guerra. Mas declararei livremente que a guerra se deveu em grande parte à mentalidade com que as pessoas tentaram promover a prosperidade das nações, à afirmação do princípio do poder em muitas circunstâncias. Toda a sociedade estava orientada para a luta, e poderia se pensar que, numa tal constelação, a forma mais feroz e brutal poderia ser evitada se as circunstâncias a incentivassem.
O fato da guerra não foi tomado como prova de que é inevitável, provou como a sociedade estava insana, como tinha chegado o momento de refletir. Na última guerra, revelou-se tanto quanto possível que não era obra de alguns, mas de povos, de povos que caíram na loucura, que não conheciam nem a lei nem a razão uns para com os outros. Como prova disso, gostaria apenas de salientar as somas incrivelmente elevadas que foram gastas para manipular a opinião pública por meio da imprensa. A guerra e, sobretudo, o seu rescaldo mostraram como está profundamente enraizado na nossa sociedade o mal de que deriva a guerra. As pessoas se reúnem para estudar a forma como ela pode ser evitada, moderada e regulada, mas em todas essas discussões não se dão passos à frente e, quase todos os anos, uma nova guerra, ainda mais temível, torna-se mais ameaçadora.
Como expressão da aspiração e da busca sincera do desarmamento deve contar o que mais se assemelha a uma confirmação do armamento mais mortífero. Um espera pelo outro e, na desconfiança mútua, ninguém tem a coragem e a confiança para dar um passo sério na direção certa.
Aqueles que vão mais longe, como por exemplo Briand[3], são considerados como se estivessem jogando com os mais altos interesses do povo. Paul Block[4], um dos primeiros jornalistas franceses, escreveu abertamente que a vitória das ideias de Briand significa a queda da supremacia francesa e é sinônimo de desastre para a França. É certo que, tal como a sociedade está hoje organizada e como os Estados e os povos se enfrentam, a guerra será inevitável, talvez em breve se torne necessária, mas isso prova que a sociedade atual dessas regiões corre para a sua queda e que Spengler tinha razão quando falava de den Untergang des Abendlandes.[5]
Se não encontrarmos à nossa volta uma compreensão do verdadeiro conceito de paz enraizado na sociedade, então algo está errado com a receptividade das pessoas a esse conceito, então não precisamos de travar a guerra, precisamos de olhar mais fundo, precisamos de reformar a sociedade doente.
Se esta doença ameaça progredir, uma vez mais, para a loucura total num futuro previsível, é tempo de refletirmos, o mais rapidamente possível, para encontrarmos formas de impedir seu crescimento e de irradiar o cancro desenfreado com a luz do bom senso, pondo, assim, fim à sua obra destrutiva.
Permitam-me que me detenha um momento para assinalar a circunstância notável de Cristo, na sua mensagem pascal e apontar explicitamente para o equívoco que prevalece no mundo da paz.
E nós, que estamos no meio do mundo, que somos controlados pela opinião pública que nos rodeia mais do que sabemos, perguntemo-nos se também nós somos guiados pela ideia correta do que significa realmente a paz na sociedade humana. Não estaremos querendo conciliar demasiado a água e o fogo? Será que não queremos dar demasiada paz à sociedade sem nos preocuparmos em mudar a visão da sociedade de forma a que ela possa aceitar e valorizar a paz?
Regra geral, a guerra se desenvolveu no passado a partir de todo o tipo de situações sociais extremamente complicadas, em que as pessoas pensavam que não havia mais soluções a não ser a violência.
Para evitar a guerra, é necessário que a sociedade se adapte. É necessário um espírito mais saudável na vida social, é necessária uma atitude mais positiva de paz na vida social para cortar a guerra pela raiz. Se hoje em dia a política dos diferentes países é quase inteiramente regida pelo interesse próprio e ninguém cede um milímetro nas negociações – exceto quando vê uma vantagem para si próprio – há que lembrar que a sociedade só pode florescer se não nos contentarmos em não nos prejudicar uns aos outros, mas entendermos a sociedade como o meio de nos prestarmos serviços uns aos outros e de progredirmos juntos por meio da troca de serviços. Não sejamos demasiado egocêntricos e cegos pelo nosso próprio interesse, mas compreendamos que temos uma vocação, e que a nossa grande felicidade reside no fato de podermos fazer os outros felizes.
O amor-próprio e a ganância são os grandes males da época e as causas mais profundas da guerra. Temos de tomar uma posição contra eles. Só então poderemos fazer um trabalho de paz frutuoso.
O fundador da União Católica Holandesa para a Paz, o muito venerado Prof. de Langen Wendels, compreendeu tão bem que não era possível promover a paz de forma fértil sem exercer uma influência na sociedade e sem combater na sociedade os males que trazem as sementes da guerra, que quis fundar uma União Católica para a Paz precisamente por esta razão, porque via a ação de paz como uma resposta à mensagem de paz de Cristo.
Não se deve interpretar mal essa posição. Ela não implica, de modo algum, que reclamemos o monopólio da única verdadeira ação de paz. Pode ser verdade que os ensinamentos de Cristo afetam o mais radicalmente possível aquilo que conduz à guerra na sociedade, mas mesmo aqueles que o seguem mais de perto e se dizem filhos da sua Igreja têm de reconhecer – e eu concordo com eles – que praticamos muito pouco – muitas vezes menos do que aqueles que se encontram fora das fileiras cristãs – a lição que Cristo deu ao mundo por meio da sua mensagem de paz. Também a nós falta a coragem de sermos apóstolos da paz no sentido pleno da palavra.
Mas, apesar da nossa consciência das suas insuficiências, cremos poder apontar como ideal para uma sã e frutuosa ação de paz a sublime mensagem de paz outrora dada por Cristo ao mundo.
No domingo passado, no Congresso da Liga Católica para a Paz na Alemanha, que se realizou em Berlim, Dom Schreiber[6] disse com razão: “A experiência dos séculos mostrou que a segurança não pode ser obtida com exércitos e fortalezas, sobretudo com o atual desenvolvimento da técnica. Ela só pode ser obtida por um espírito de paz entre os homens e os povos e pela proteção de todos os povos pela Liga das Nações, que deve administrar a justiça e ter também um poder correspondente para fazer cumprir as suas decisões. Os exércitos se tornariam então supérfluos. Para este fim, o povo deve ser educado através da imprensa, da escola, em reuniões e congressos”.[7]
Quanto falta ainda fazer para que esse espírito de paz, não digo entre as nações – que é o último – mas entre os homens – que deve ser o primeiro – viva!
Olhemos à nossa volta por um momento.
Nesta altura de mal-estar geral e de desemprego, há apelos de todos os lados para que se negocie com os governos de outros países sobre possíveis exportações dos nossos produtos, para proteger e defender as nossas indústrias nacionais, pelo menos para promover o comércio dos seus produtos. É triste ouvir um homem como o senhor Primeiro-Ministro Colijn[8] nos garantir que os seus anos de experiência lhe ensinaram que todas essas negociações acabam por ser infrutíferas, porque cada Estado só se preocupa com os seus próprios interesses. Não há praticamente nenhuma questão de nos aproximarmos uns dos outros com o desejo sincero de nos fazermos bem ou de prestarmos um serviço uns aos outros. Tudo se baseia, naturalmente, no interesse próprio.
No comércio e nas empresas, não é diferente. Quase não se presta atenção ao que as pessoas podem pedir. Um dá ao outro não mais do que o necessário para vinculá-lo ao seu serviço nas condições mais favoráveis. Isso é eficiente. Isso é negócio. Este é o segredo do sucesso. Existem sistemas de pagamento de salários elevados, mas com o objetivo de ganhar mais, e não para criar condições de trabalho ideais ou satisfazer qualquer princípio superior.
A concentração do capital e a irresponsabilidade daqueles que o fornecem para o que fazem definem a luta de classes e criam uma atmosfera de ódio e de inimizade entre grandes grupos da população, tanto mais que quase todos os sentimentos de amor são banidos dos negócios; tudo é tratado de forma empresarial e pesado na balança.
Felizmente, há sinais de melhoria e esperança no futuro. Mas não nos iludamos. A sociedade desenvolveu gradualmente um maior sentido de união, a cooperação foi conseguida em muitos domínios. Este encontro é, por si só, uma prova gratificante desse fato. Mas, no seu discurso de anteontem, o Magnífico Reitor da Escola Superior de Comércio de Rotterdam, Prof. Dr. N. J. Polak[9], chamou a atenção para a facilidade com que essa cooperação é conduzida numa direção egoísta, e o seu efeito social é negligenciado. Por isso, falou de um egoísmo coletivo idealizado como um fenômeno caraterístico do nosso tempo.
Intimamente relacionada com a falta de amor está a falta de perdão. É certo que não se pode deixar passar tudo, mas será que isso significa que temos de regressar às velhas ideias pagãs, que toda a calúnia deve ser lavada com sangue, que um erro perdoado é uma fraqueza? É triste que, na política internacional, os erros sejam erros que nunca serão perdoados, que a aversão e até o ódio sejam artificialmente cultivados entre países e povos, que uma boa palavra sobre um antigo inimigo e ver algo de bom nele seja quase equivalente a regicídio e traição.
A mensagem de paz de Cristo diz: “Amai aqueles que vos odeiam, fazei bem àqueles que vos perseguem […]. Se fizerdes o bem somente a quem vos amam, que mérito há nisso? Assim fazem os pagãos. Mas eu vos digo que façais o bem também àqueles que vos fazem mal.”[10]
Sei que, para muitos na sociedade atual, essa palavra é a voz de quem grita no deserto, mas para vós, que amais a paz, que compreendeis comigo que esta paz deve, em última análise, nascer da disposição dos muitos que constituem a comunidade das nações, posso vos fazer ouvir essa palavra de Cristo como uma indicação de certa forma radical, até mesmo difícil de pôr em prática, mas, no entanto, marcante, da direção que deve tomar o nosso trabalho pela paz.
Mais uma vez, a nossa ação de paz deve se assentar na reforma da sociedade. Na sociedade, os princípios sólidos do amor e do perdão têm de voltar a florescer e a ser praticados universalmente.
Parece duro e pede quase algo impossível, oferecer a outra face para um segundo golpe no rosto, muitos até pensarão que é uma loucura, mas como uma vez o Bispo Espiridião na corte imperial de Constantinopla, por um cortesão assim insultado, praticou prontamente o mandamento do Senhor e assim desarmou para sempre o seu ofensor, deveria haver ainda alguns na nossa sociedade que demonstrassem, por um perdão tão heroico, que há as chamadas loucuras que são mais eficazes do que todas as espécies de palavras, às quais nenhuma ação corresponde. Compreendamos que a adaptação eterna aos pontos de vista da época não nos leva a lado nenhum. Só quando compreendermos isso é que se poderá efetuar uma reforma da sociedade, suficientemente radical para manter a guerra fora do mundo.
Se a filosofia de um Nietzsche foi capaz de nos trazer a guerra, deixemos que uma filosofia inspirada na notável mensagem de paz do amor e do perdão traga de novo a paz.
Não há outro caminho.
Se queremos manter a praga da guerra fora destas regiões, temos de abrir as portas de novo a estes dois pensamentos: o amor e o perdão entre o nosso povo neerlandês e, a partir daí, entre os povos vizinhos. Só eles podem ainda salvar a sociedade doente, quase insana. É como se o nosso mundo civilizado estivesse sendo arrastado para a sua ruína, como que pela força, dos próprios princípios em que se apoia como causa do seu progresso. Que se reflita a seu tempo.
Ainda é tempo, ainda muito pode ser feito em relação ao muito que já foi feito e que está dando os seus primeiros frutos, para coroar de êxito a obra da paz. Nem tudo está perdido, embora os tempos sejam sombrios.
A nossa esperança está no nosso povo, no nosso povo de raciocínio sóbrio. Afinal de contas, eles não podem ser cegos à verdade cada vez mais forte de que eles próprios têm a guerra e a paz nas suas mãos, de que a opinião popular, em última análise, também governa.
Milhões de florins foram gastos na guerra para controlar e conduzir a multidão, para cultivar e manter a inclinação correta entre o povo, necessária para continuar a guerra até ao seu amargo fim. Isso prova o quanto o sentimento popular é importante para a preservação da paz. Permitam-me que cite aqui o que o Presidente da União Internacional da Liga das Nações, o nosso admirável Sr. Limburg[11], disse no ano passado: “Nunca se deve esquecer que o progresso da Liga das Nações – e acrescentemos aqui: o florescimento de todo o trabalho para a propagação da ideia da paz – seria muito maior se a opinião pública nos diferentes países fizesse exigências mais fortes. Nenhum governo poderia resistir a uma opinião pública bem organizada. Infelizmente, ainda não existe essa opinião pública poderosa. É, portanto, culpa dos próprios povos o fato de a Liga das Nações não produzir mais resultados” (II, 47).
A essa palavra do Sr. Limburg, há alguns meses, os Países Baixos deram uma esplêndida resposta por meio da sua petição de paz, organizada e magistralmente conduzida pela imprensa neerlandesa. Mas temos de continuar a gritar. Não devemos deixar de fazer com que as nossas exigências razoáveis, as exigências do bom senso, sejam ouvidas por aqueles que em breve nos representarão na Conferência sobre o Desarmamento, não só para que eles próprios sejam fortes, mas para que outros delegados possam procurar e encontrar as mesmas garantias na opinião pública dos seus países.
Não, esta reunião não é vã. Que se realizem muitas mais em todas as regiões do nosso
país.
Que haja paz.
Muitos se desesperam por ela. É preciso dizer-lhes cada vez mais alto que muitos outros, todos nós, acreditamos na paz. Mas se puder haver paz, ela há de chegar.
E então sentimos que é uma tarefa nobre ter podido fazer alguma coisa, ter podido dizer uma única palavra, como disse no início, para exprimir a fé na paz, para animar a esperança da paz e sobretudo para despertar o amor e o entusiasmo pela obra da paz.
Termino com uma bela palavra do Papa Pio X ao Presidente Taft[12], em 1914, no início da guerra: “Não há objetivo mais nobre do que promover a unidade dos espíritos, refrear as tendências bélicas, eliminar os perigos da guerra e reduzir as preocupações causadas pela chamada paz armada. Tudo o que se faz para este fim, mesmo que não atinja imediata e perfeitamente o objetivo pretendido, é, no entanto, um esforço nobre, que é mérito de quem o empreende para o bem da comunidade” (I. 1).
Que este nobre esforço nos mantenha sempre unidos.
- Tradução de: Titus Brandsma, Vrede en Vredelievendheid, discurso proferido na Igreja de São Nicolau (Bergkerk) em Overijssel, Deventer, em 11 de novembro de 1931. Datilografado (NCI OP112.21), 11 páginas (da página 2 à página 11).Esta tradução foi reproduzida com permissão de: Schröder, B. (2023), ‘Paz e amor à paz’, Sapere Aude, 14(28), 794-804. https://doi.org/10.5752/P.2177-6342.2023v14n28p794-804.↑
- Jo 14,27. ↑
- Aristide Briand (1862-1932), ex-Primeiro Ministro da França e prêmio Nobel da Paz em 1926. ↑
- Paul Block (1875-1941), filantropo judeu e presidente da Paul Block and Associates (mais tarde Block Communications), editor do Pittsburgh Post-Gazette e do Toledo Blade. ↑
- Oswald Arnold Gottfried Spengler (1880-1936), historiador e filósofo alemão, cujo pensamento é influenciado por Nietzsche, sua obra de referência é Der Untergang des Abendlandes (A queda do Ocidente), publicada em dois volumes em 1918 e 1922 respectivamente. ↑
- Christian Schreiber (1872-1933), primeiro bispo diocesano da então Diocese de Berlim (erigida em 1930). ↑
- ‘De katholieke vredesactie: een belangrijke toespraak van Mgr. Dr. Schreiber’, De Maasbode, Rotterdam, n. 24.001, 64 ed., 9 nov. 1931. Países Baixos. Disponível em: www.delpher.nl Acesso em 23 ago. 2023. ↑
- Hendrikus Colijn (1869-1944) foi Primeiro-Ministro dos Países Baixos de 1925 a 1926 e de 1933 a 1939. ↑
- Nico Jacob Polak (1887-1948). ↑
- Mt 5,44ss ↑
- Joseph Limburg (1866-1940). ↑
- William Howard Taft (1857-1930), 27º presidente dos Estados Unidos da América. ↑
Tradução de Bruno Castro Schröder(2023)